20 março, 2009

Sedução

Há já algum tempo que observo a rapariga. O corpo que se move lenta e cuidadosamente, terminando sempre numa pose que, como direi, realça toda a sua feminilidade: o peito em riste, a coluna curvada para um lado, as ancas para o lado oposto, o pescoço ligeiramente para trás. Ao mesmo tempo, as mãos, ainda mais lentas que o resto do corpo e uma de cada vez, percorrem, abertas, os cabelos longos. Um pretexto, talvez, para levantar os braços e animar ainda mais o peito.
.
Percebo instintivamente, ao olhar em volta, para quem dirige ela estes movimentos minuciosos de sedução: o homem que conversa comigo. Vejo como ele ignora deliberadamente a rapariga e como isso faz com que os movimentos dela fiquem ainda mais intensos e presentes. Mais que uma vez reparo que ele não consegue evitar um ligeiro estremecimento do seu corpo e como controla a vontade de olhar para ela.
.
Soube logo como aquele jogo era perigoso, que o devia ter arrastado para fora daquele lugar. No entanto não o fiz. A curiosidade foi mais forte. Quis saber até onde ela iria. E ele. E eu.
.
Ele, entretanto, olha para mim, leva um copo de whisky aos lábios, ri de uma piada qualquer, continua a esforçar-se para não olhar na direcção dela. Eu continuo a observá-la e também eu me rio, por estar a ver alguém em plena acção de sedução de forma tão clara, tão evidente, tão estereotipada.
.
Serão aqueles gestos pensados, trabalhados, conscientes? Ou serão espontâneos, apenas o corpo a manifestar uma vontade? Pergunto-me, enquanto observo a graciosidade com que ela se move de uma pose para a outra, num ritmo de diva, que começo a invejar.
.
Mais tarde ou mais cedo aconteceria. Aliás, o que nunca poderia imaginar era que tivessem passado tantos anos sem que nada disto tivesse ainda acontecido.
.
Ganho coragem. É a minha vez de pedir mais um whisky. Ele brinca com as minhas mãos e com o meu cabelo, diz-me ao ouvido o que sabe que gosto de ouvir, os olhos a destilar desejo. Bebo de uma vez o conteúdo do copo. Beijo-o. Olho uma última vez para a rapariga e finalmente deixo-o. Livre.
.
Acordei, como sempre, com ele ao meu lado. Nunca soube o que aconteceu naquela noite. Mas sei que também a mim ela soube seduzir.

03 março, 2009

um homem que corre

o homem corre, corre, corre; o corpo em esforço, as pernas musculadas a avançar, os braços em movimento, a t-shirt suada, o som dos pés a cair no chão de terra, a sombra das árvores entrecortada por pequenas manchas de sol, o som da respiração, as batidas do coração cada vez mais fortes, os olhos presos apenas ao caminho em frente; o homem corre e desvia-se dos ramos mais baixos, desvia-se das pedras do caminho, percebe rapidamente por onde deve ir; e vai; o homem corre, corre, corre e depois pára; pára e curva-se, as mãos nos joelhos nus, a respiração ofegante, o coração muito rápido começa a abrandar, o suor a cair-lhe da cabeça, a escorrer pelo corpo todo, gotas salgadas de suor que deixam marca no chão de terra; o homem respira, curvado sobre os joelhos, olha em frente, acocora-se, a cabeça tomba entre os joelhos dobrados, as mãos na cabeça sentem o suor; o homem sente uma dor no peito e finalmente chora; acocorado, as mãos na cabeça, gotas de suor, lágrimas, terra, coração apertado, o corpo descansa e chora; o homem leva as mãos à face e limpa as lágrimas, tira a t-shirt que passa na cabeça e peito para tentar secar o suor, volta a vesti-la, respira fundo, levanta-se, olha o caminho em frente; recomeça a correr, primeiro devagar, depois mais depressa, o homem corre, corre, corre e transforma-se no movimento, no caminho, nas árvores em volta, no ar que respira, o homem agora é apenas um corpo em esforço a avançar, afastando os ramos, desviando-se dos obstáculos, percebendo rapidamente para onde deve ir; e vai.