20 maio, 2009

Duas vozes


Vim para a beira-mar. Ele está sentado mais atrás, na areia seca. Lê um grande livro interminável que arrasta consigo para todo o lado. Tem um daqueles chapéus de lona enfiado na cabeça quase até aos olhos, o que lhe dá um ar muito mais velho e o torna quase cómico. As calças de uma cor clara dobradas pelo joelho, a camisa aberta. Está sentado numa cadeira baixa, e por isso as pernas, grandes, fazem um ângulo, com os joelhos para cima. Percebo quando olha para mim, levanta os olhos do livro, fica uns segundos a olhar, anota qualquer coisa num papel e recomeça a leitura.
Eu brinco com a areia molhada, faço desenhos com os dedos dos pés e com os calcanhares, que são logo apagados pelas ondas. Apanho conchas e pedrinhas que brilham com a água salgada, deixo-as nas mãos o tempo suficiente para lhes sentir o peso, a forma, a textura e depois atiro-as de volta ao mar. Olho para ele de vez em quando, confirmo a sua presença, o seu olhar. Mas quase sempre estou a olhar para longe, a ver as ondas que se formam e desfazem, os milhares de brilhos que a luz faz na água, as gaivotas, a sombra das nuvens. Levo os braços ao ar, abertos, para receber o sol e a brisa, estico-me, dou voltas, agacho-me, molho as mãos e levo-as à cara, sinto o sal e o sol a entranhar-se na minha pele.
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Vou ler a paisagem, disse ela, e deixou livro aberto, voltado para baixo para marcar a página, em cima da toalha; as nossas mãos tocam-se; trocamos um sorriso. Vejo-a ir devagar até à beira-mar; ela olha para trás uma vez, diz-me adeus, eu aceno e volto para o livro. Mas as letras deixam de formar palavras, vejo-as a tomar volume e a escorregar pela página em branco, não sou capaz de as apanhar, misturam-se com a areia. Olho para ela, está a brincar com a água, baixou-se, talvez para apanhar uma concha. As letras reaparecem na página e continuo a ler. Avanço duas linhas e desconcentro-me de novo. Ela tem um vestido de alças, leve; deu-lhe um nó, em baixo, para não o molhar; os cabelos soltos passeiam com o vento, de um lado para o outro. Olhou para mim agora, percebe-se observada e inventa uma dança, para me dizer que sabe que a vejo. Tento ler mais um pouco, consigo até encontrar um raciocínio coerente nos meus pensamentos e anoto-o numa folha que faz de marca no livro. Aproveito esta conquista para voltar a olhar na direcção do mar. Ela tem os braços erguidos sobre a cabeça, um pouco inclinada para trás, está provavelmente de olhos fechados, a receber o sol na face.
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O sol anima-me, levo os braços acima da cabeça e deixo-os cair pelos lados. Volto-me ligeiramente, olho na direcção da areia. Ele tem o livro fechado sobre os joelhos, o chapéu caiu para trás; olha fixamente para mim. Apetece-me ir buscá-lo, arrastá-lo comigo para o mar. Sorrio, aceno-lhe.
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Ela está luminosa, solar. Apetece-me entrar na estranha dança que ela parece ter inventado para mim. Mas sinto-me incapaz de me levantar, o meu corpo torna-se extraordinariamente pesado, como o livro enorme que leio. Ela volta-se. Aceno-lhe.
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Quero misturar-me com ele, como me misturo com o sol, com o sal, com a brisa, com o mar, com a areia.
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Ela vem para aqui. Deixo cair o livro, deixo o meu peso na areia, levanto-me, vou ter com ela.
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