19 fevereiro, 2008

A Carta

Às vezes escrevia-me uma carta, outras vezes enviava um postal ou uma embalagem com prendas e fotografias. Contava sempre grandes aventuras, nunca soube quais as verdadeiras e as inventadas. Mas era sempre com grande ansiedade que abria os pacotes que chegavam, atados com fio do norte e exibindo uma grande variedade de selos estranhos. Antes de abrir cheirava sempre o pacote, tentando adivinhar o que traria dentro: cheguei a receber fruta nesses pacotes! Mas as prendas mais frequentes eram perfumes, óleos, roupa, pequenas peças de artesanato e livros. Claro, sempre acompanhados de uma carta com as descrições alucinantes das suas viagens.
Quando as cartas e encomendas começaram a rarear, de início nem notei, tinha vindo para a universidade, a minha vida estava cheia de coisas novas que precisava explorar. As cartas tornaram-se um apontamento exótico na minha vida. Um Natal qualquer, estávamos a abrir as prendas e apercebi-me que já não recebia notícias dele há mais de 2 ou 3 anos, mas nem consegui ficar preocupada, pensei, "deve estar metido noutra grande aventura". Quando me casei quis comunicar-lhe, mas para onde? Ainda contactei algumas embaixadas, mas a resposta era sempre: paradeiro desconhecido.
O tempo foi passando, os filhos foram nascendo, divorciei-me, voltei a casar, voltei a divorciar-me.
De tempos a tempos relia as cartas antigas, recordavam-me a minha infância, transportavam-me para um mundo imenso que nunca conheci. Ainda as guardo todas num caixote, com as fotografias que me enviava e onde ele nunca aparecia.
Na verdade nunca o vi, conhecia-o apenas pelo que me contava nas cartas, foi sempre para mim um mistério, uma existência quase mágica, uma personagem de romance. Por isso, foi um choque quando recebi a carta. Pediam-me para ir reconhecer um corpo que eu nunca tinha visto. Fui. Ia vê-lo pela primeira e última vez. Quando o destaparam não hesitei. Tinha o mesmo cheiro das cartas. Era o meu pai.

Janela

"Estás cada vez mais cínica", disse ele, depois daquele breve silêncio que acontece quando já não há mais nada a argumentar.
Ela levantou-se, aproximou-se da janela, abriu-a, acendeu o cigarro que já tinha entre os lábios, e depois de lançar a primeira baforada de fumo, respondeu-lhe "não, estou cada vez mais velha". Enquanto o cigarro durou, manteve o olhar o mais longe possível, vagueando entre constelações cujo nome nunca conseguira decorar. Desejava que aquele cigarro ardesse a noite toda, queria perder-se nessas estrelas longínquas.
Ele levantou-se do sofá, ficou de pé alguns segundos, como se esperasse que o seu movimento a trouxesse de novo para dentro da sala, para dentro da conversa, para dentro do que sobrava dos dois."Vou-me deitar", disse ele, por fim; ela acenou a cabeça sem se voltar, anuiu com a mão num gesto leve e continuou perdida entre as estrelas, as lágrimas a torná-las ainda mais brilhantes.

06 fevereiro, 2008

Beco

Disse-me uma vez uma amiga
que num beco, a única saída é para cima!

Espelho

O pior julgamento é o que fazemos de nós próprios e não o que pensamos (imaginamos) que os outros fazem de nós.

Uma palavra, um pensamento e logo se levantam velhos fantasmas, velhas memórias.

E quando essa palavra é dita por outros, mesmo sem julgar, de repente ficamos nus, frente a um espelho onde já nada podemos ocultar.

No espelho estão todas as fragilidades, todas as forças, tudo o que construímos, tudo o que mostramos e o que ocultamos, deliberadamente ou não, conscientemente ou não.
Por isso, frente ao espelho, invento outras palavras, as do futuro.

Se possível, sem me julgar.